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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Conferência Internacional em Alternativas à Experimentação em Animais - Dia Dois

O segundo dia seria dedicado inteiramente à temática das alternativas, tendo Horst Spielmann -  uma das pessoas mais respeitadas ao nível mundial na área do  desenvolvimento e validação de alternativas aos testes em animais - ficado encarregue de dar início às "hostilidades".

Horst Spielman
Spielman fez uma apresentação esclarecedora do caminho até agora percorrido no desenvolvimento de alternativas aos testes toxicológicos em animais, alertando para os mais importantes desafios. De destacar a sua constatação que a harmonização dos testes toxicológicos desde os anos 80 e o resultante fim da repetição dos mesmos salvaram muitos mais animais que todas as alternativas até hoje desenvolvidas.


Enumerou os diversos centros para os 3Rs na Europa, e salientou a importância de desenvolver e validar alternativas para a os testes toxicológicos obrigatórios, cuja esmagadora maioria ainda requer o uso de animais (as alternativas até hoje desenvolvidas correspondem apenas a 3% do uso de animais em toxicologia). A iniciativa REACH, que pretende identificar e caracterizar cerca 30.000 compostos, torna o desenvolvimento destas alternativas ainda mais urgente, abrindo uma oportunidade que é largamente ignorada em Portugal.  Descreveu ainda diversos métodos alternativos, indo desde os testes em culturas de células aos modelos matemáticos para prever a toxicidade (ou a ausência dela, como no Halle's RC model). Spielman não tem o carisma de Marc Bekoff, ou mesmo de Andew Knight. Contudo, deu à conferência uma contribuição lúcida, científica, pragmática e verdadeiramente informativa, dando-lhe assim credibilidade.  O seu  optimismo é algo contido, mas é, não obstante, optimismo.

De seguida, João Barroso do SeCAM (Services & Consulattion on Alternative Methods, sediado na Suiça) deu uma perspectiva do actual panorama político na UE, relativamente ao uso de animais em testes toxicológicos, e que para os cosméticos estará definitivamente banido a partir do próximo mês de Março deste ano. Foi algo penalizado pela abrangência da apresentação anterior, cujo conteúdo se sobrepôs um pouco à sua apresentação, mas apresentou não obstante vários testes alternativos e o objectivo futuro de integrar estes métodos para um maior valor preditivo.

Paulo J. Pereira (CNC-Coimbra) de seguida  abordou o potencial do uso de modelos in vitro em investigação básica (que representa mais de 60% do total de animais utilizados) e Ana Paula Pêgo (IBMC.INEB) mostrou como as conquistas da engenharia de tecidos na sua aplicação em medicina podem também ser usadas aproveitadas na forma de métodos não-animais em investigação biomédica.

A sessão da tarde focou-se sobretudo no uso de modelos in silico (isto é, modelos informáticos) em biomedicina. A abrir, Vanessa Diaz apresentou a iniciativa Virtual Physiological Human, um ambicioso projecto que pretende avançar o desenvolvimento e integração de modelos virtuais de processos fisiológicos de modo obter uma simulação que permita descrever e prever fenómenos fisiológicos de interesse. Seguidamente, Paulo Paixão centrou-se no uso de modelos informáticos com aplicação em farmacocinética.

Uma associação beneficente que
investe na ciência
Dando aos participantes algum descanso da  complexidade técnica das apresentações anteriores, Andrew Bennett (por troca com Mark Cunningham, que apresentou no 1º dia) apresentou o FRAME's Alternatives Laboratory que dirige e o trabalho que este vindo a desenvolver nas últimas duas décadas, bem como os seus actuais projectos.  A particularidade deste laboratório, sediado  na Universidade de Nottingham, é ser directamente financiado e gerido por uma associação beneficente, uma abordagem que muitas associações deste tipo poderiam seguir, pondo o dinheiro onde ele é realmente necessário: na ciência e na inovação, sendo assim agentes activos de mudança.

O uso de alternativas ao uso de animais no ensino foi o tema de Nick Jukes, da Interniche e Luísa Bastos (INEB).

Longe de afirmar que um ensino de qualidade de Biologia ou Medicina Veterinária pode ser conseguido sem o contacto com animais, Jukes salientou antes que este deve ser conduzido num contexto natural. Assim, aspirantes a biólogos devem tomar contacto com os animais no seu habitat e os estudantes de Veterinária devem ter tanto contacto quanto possível com o tratamento de animais em contexto clínico, mas não na artificialidade de um
laboratório.


Poster apresentado sobre o Projecto Rodentia

Na sessão de posters apresentei um projecto que se situa um pouco entre estas duas situações, e que colocou em salas de aula de 1º ciclo animais de laboratório em espaçosos e enriquecidos habitats artificiais. Os benefícios didáticos foram diversos e os animais apresentaram-se sempre de boa saúde e bem-estar, o que abre lugar à possibilidade de ceder roedores de laboratório (algo já aqui abordado)  a escolas, desde que não seja necessário eutanasiá-los por razões humanas ou científicas e que sejam devidamente acompanhados.

Confesso que, de todas as apresentações, a de Jukes foi provavelmente a que mais me convenceu, pelo enorme número de argumentos válidos com que reforçou a sua apresentação. No referente ao tema central, mostrou algumas simulações interactivas da dissecação de animais, mas a abordagem com maior potencial que apresentou foi sem dúvida o do uso da realidade virtual no treino de cirurgias, que permite de modo muito realista treinar veterinários nas mais diversas situações, bem como a repetição de  procedimentos sem nunca sacrificar animais.


Luísa Bastos, de seguida, tomou como ponto de partida a crescente utilização de simuladores em ensino Medicina, não só de estudantes, mas também de profissionais. Os dados que apresentou mostraram de modo muito convincente que estes métodos podem ser uma grande mais-valia na formação de médicos veterinários, melhorando o nível de  preparação destes profissionais.

No final destes dois dias, fica desta conferência uma boa impressão do trabalho realizado ao nível nacional e internacional no sentido de diminuir o uso de animais em ciência e no ensino. O que contudo mais sobressai são as actuais limitações neste domínio e o longo caminho ainda por percorrer. Este tipo de eventos dão  um contributo positivo para uma maior consciencialização destes factores e para a colaboração entre as diversas partes interessadas, pelo que espero que as próximas edições sejam mais participadas, de preferência com cientistas das mais variadas áreas, ao invés das mesmas caras do costume. 

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Conferência Internacional em Alternativas à Experimentação em Animais - Dia um

Como já anunciado aqui, a Sociedade Portuguesa para Educação Humanitária (SPEdH) organizou em Almada a 26 e 27 de Janeiro  a International Conference of Alternatives to Animal Experimentation. Esta associação que é recente e dependente do trabalho de voluntários, montou uma conferência bem organizada que contou com interessantes apresentações por oradores nacionais e estrangeiros com trabalho relevante.

Marc Bekoff

A conferência abriu com Marc Bekoff, um conhecido etólogo e crítico da experimentação em animais. A sua apresentação, contudo, não se focou muito no uso de animais em ciência, mas antes nas suas emoções, uma vez que “minding animals implies taking care of other animals and attributing minds to them”. Um ponto recorrente na sua apresentação foi insistir que reconhecer vidas emocionais aos animais nada tem de antropocêntrico, uma vez que não estaremos a atribuir características que os humanos têm e os animais não. Deu como exemplos estudos que sugerem que várias espécies animais são capazes de sentimentos como empatia, ou “aversão à inequidade” (um sentido de justiça/injustiça?). Argumenta assim que sabemos o suficiente sobre as características cognitivas, emocionais e (possivelmente) morais dos animais para que os deixemos de tratar como “whats”, mas sim como “whos”.

Sensivelmente metade da sua apresentação centrou-se num tema recorrente da sua investigação, nomeadamente o “brincar” e a importância que esta actividade tem para o desenvolvimento cognitivo, emocional e mental dos animais, bem como a cimentação das relações sociais.

Ao nível da experimentação animal, pintou um cenário que, podendo ser verdadeiro nalguns contextos não considero de todo representativo da actividade científica com animais. Bekoff não é contudo um radical, e aceita que o progresso no desenvolvimento de alternativas – que considera terem uma maior validade científica – seja um processo gradual, e que não vale a pena ditar opiniões “from an ivory tower when there is a real world out there”.   

Andrew Knight apresentando
o seu recente livro
Foi seguido por Andrew Knight, que na sua apresentação resumiu o seu livro "The costs and benefits of Animal Experiments". Neste defende que a maior parte da investigação com base em animais não se traduz em benefício para os seres humanos, algo que fundamenta nalgumas revisões sistemáticas feitas nos últimos anos. Deu ainda exemplos de algumas drogas testadas em animais e depois comercializadas, mas que tiveram de ser retiradas do mercado pela sua perigosidade para os humanos. Neste lote incluiu a Talidomida, uma droga receitada a grávidas para combater o enjoo mas que causava malformações nos fetos. 

Na generalidade, os dados que apresentou correspondem de facto à informação de que hoje dispomos do valor preditivo dos testes de eficácia de drogas em animais para os seres humanos. Omitiu, no entanto, que estes dados não constituem prova da falta de validade dos modelos animais, mas que são antes   reveladores de experiências mal desenhadas e mal conduzidas, sobrestimação da eficácia das drogas e um enviesamento resultante da publicação de dados positivos pelas revistas científicas, em detrimento de resultados contraditórios por outros laboratórios. Eu não pude deixar de ressalvar isso na sessão de comentários e questões, acrescentando que é  revelador o facto de, das drogas de facto eficazes e seguras no mercado, cerca de metade serem também usadas noutras espécies em medicina veterinária. Comentei ainda que a Talidomida é um caso paradigmático de falta de testes em animais, uma vez que não se tinha verificado a sua perigosidade em fêmeas prenhas. Aliás, e como Horst Spielmann depois acrescentou, foi este caso que levou à obrigatoriedade de extensos testes com animais para aferir da segurança de medicamentos. 

Seguir-se-ia Andrew Bennet, que por problemas com o vôo foi adiado para o segundo dia,  tendo por isso trocado com Mark Cunningham, que mostrou novas e interessantes abordagens in vitro e in silico para a compreensão da epilepsia, provenientes respectivamente de  tecidos e dados retirados de humanos. 

Na segunda sessão - "The new paths of Europe, for Citizenship and Ethics" - Marcelle Holloway, em representação da Comissão Europeia, fez uma resenha da nova directiva 62/2010/EU, e da importância central dos 3Rs na mesma. De seguida, Ana Paula Martins, da DGAV, traçou o passado e actual cenário legislativo e regulador em Portugal, admitindo os atrasos e as várias falhas da autoridade competente na regulação da experimentação animal, fruto de uma crónica falta de recursos e de pessoal. No entanto, e como já o tinha mostrado nas várias apresentações que tenho assistido recentemente, mostra-se optimista quanto ao impacto positivo que as novas regras terão na melhoria das condições de bem-estar animal em Portugal. Não revelou muito sobre o modo como a directiva deverá ser transposta para a legislação nacional (algo que já deveria estar feito em Novembro, mas cujo atraso não é exclusivo para o nosso país), tendo referido contudo que a anterior directiva de 1986 tinha sido transposta sem alterações para a lei nacional. 

O Animalogos representado no ICAEE

Seguidamente, temas como a validação de alternativas pela ECVAM, a disseminação de informação sobre os 3Rs por centros nacionais (algo que Portugal carece) e o Projecto Toxoma Humano foram abordados por, respectivamente, Claudius Griesinger, Daniel Butzke e Mounir Bouhifd.

O dia terminou com as sessões de posters científicos, um deles sendo da autoria dos contribuidores do Animalogos e que, precisamente, fazia referência ao blog como plataforma de debate sobre a questão animal, e o seu uso como recurso didáctico e de avaliação no ensino.

Em conclusão, um dia preenchido e promissor, de um evento que reflecte a crescente preocupação pelo (bem-estar do)s animais usados em ciência. 

sábado, 26 de janeiro de 2013

Vamos continuar a salvar o Priolo ?


Reportagem RTP from SPEA on Vimeo.

Está a decorrer uma campanha internacional de crowdfunding  com o objetivo de angariar fundos para se continuar a produzir e plantar a vegetação que faz parte da cadeia alimentar do priolo. Nas suas três primeiras semanas a campanha não ultrapassou os $7 000 de contribuições (cerca de 5500 Euros). Este valor ainda está longe dos $28000 estabelecidos como objectivo necessário para garantir a continuação deste projeto a curto prazo. A companha decorre até ao final do mês de Fevereiro e pode doar AQUI.

A conservação do Priolo contou entre 2003 e 2008 com fundos comunitários através de um projecto LIFE e já aqui demos conta dos efeitos benéficos deste projecto não só sobre a espécie mas também sobre as comunidades humanas locais. O programa teve depois seguimento com o projecto LIFE Laurissilva Sustentável (2008-2013) que providencia as plantas essenciais à dieta alimentar do priolo mas que termina em Junho próximo. Se ainda tem dúvidas sobre a importância da conservação do Priolo, veja o documentário da Madalena Boto.



terça-feira, 22 de janeiro de 2013

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Direitos dos animais - uma perspectiva jurídica

De modo a melhor entender a discussão em torno do caso do cão que causou a morte a um bebé de 18 meses no início deste mês, o Animalogos gostaria de clarificar alguns dos conceitos que têm vindo a ser utilizados – por vezes de modo descontextualizado – na discussão. Assim, pedimos uma perspectiva sobre o tema a Orsolya Varga, pós-doc do Instituto de Biologia Molecular e Celular com background em medicina e direito, e um interesse académico em temas ligados à legislação sobre os animais. 

Anna Olsson: Orsolya, antes de mais podias explicar-nos o que é um direito legal? 

Orsolya Varga: A resposta é fácil: direitos legais são aqueles que existem sob as regras de sistemas legais. O nosso sistema legal é baseado no entendimento de direitos e responsabilidades legais das pessoas. A existência de direitos legalmente consagrados não é recente, do ponto de vista histórico. Por exemplo, o sistema legal romano clarificava quem tinha o direito legal de passar leis, quem podia julgar casos, quais os direitos dos cidadãos, ou das mulheres. Escravos não tinham direitos consagrados e que pudessem reivindicar, nem direitos baseados na cidadania.

Na legislação contemporânea a palavra-chave é o conceito de pessoa. Apenas uma pessoa, com personalidade jurídica, tem direitos e responsabilidades consagradas na lei. O conceito de pessoa foi a questão central durante a abolição da escravatura e a luta pelos direitos das mulheres, estando a personalidade jurídica do feto no centro do debate actual. Há hoje muita discussão em torno dos direitos do feto e direito à reprodução. Uma questão parcialmente semelhante é a dos direitos dos animais.

Há ainda algo que queria acrescentar. As leis naturais são diferentes dos direitos legais. Os direitos naturais são universais e inalienáveis, e não dependem de contingências da lei, sendo independentes de qualquer governo nacional ou internacional. Os direitos humanos são considerados direitos naturais. Os humanos nascem livres e iguais entre si. 

AO: Muitos comentadores têm a este respeito declarado que os animais não têm direitos, quase como se isso fosse um facto indiscutível. Há assim duas questões de fundo, que convém considerar separadamente. Primeiramente, do ponto de vista da teoria legal, podem os animais ter direitos, poderão ser entidades detentoras de direitos? 

OV: Muitos crêem que sim, outros não. Outros ainda consideram que a personalidade jurídica apenas deveria ser atribuída a alguns animais em particular. A principal questão aqui é que na visão tradicional os animais são propriedade humana. Esta abordagem é rejeitada por aqueles que advogam direitos para os animais e reclamam uma mudança para um paradigma não-antropocêntrico. Esta nova abordagem implicaria uma mudança fundamental nas relações entre humanos e animais, e afectaria radicalmente o modo como nós os tratamos.

Mas para responder à tua questão: sim, tecnicamente, os animais poderão ter direitos, num sentido limitado. Pessoalmente, não acho que dotar os animais de direitos fosse algo fácil de alcançar, do ponto de vista técnico.

Mas a extensão do conceito de pessoa a todos os animais colhe o apoio de alguns académicos. A teoria tradicional em direitos dos animais do filósofo Tom Regan assenta fundamentalmente no interesse que estes têm em evitar o sofrimento. Seguindo esta mesma linha, o jurista Gary Francione argumenta simplesmente que os animais requerem um só direito: o de não serem considerados e tratados como propriedade.

Uma campanha para uma lei ‘universal’ para os animais tem vindo a ser promovida pelo Animal Legal Defense Fund. A iniciativa deste grupo é a Animal Bill of Rights, que pretende conferir direitos naturais aos animais. Esta proposta de legislação, apresentada numa petição dirigida ao Congresso dos EUA, pretende proteger os animais, reconhecer que são seres sencientes, e atribuir-lhes direitos legais na sociedade humana. 


Um outro exemplo é o Nonhuman Rights Project, que tem procurado que seja reconhecido o estatuto de pessoa a certos animais, uma vez que apenas um ser dotado de personalidade jurídica poderá ser detentor de quaisquer direitos legais. Ainda que o projecto seja nos Estados Unidos, e com base na common law, o resultado terá impacto como mensagem universal. Os advogados têm preparado casos para apresentar em 2013. Eu espero pelo veredicto.

Acrescento que Steven Wise, o presidente do Nonhuman Rights Project, é um jurista muito influente na área do direito animal. Ele argumenta em ‘Drawing the line’ que alguns animais, e em particular os primatas, atingem os requisitos necessários para terem personalidade jurídica, e dever-se-ia por isso atribuir certos direitos e protecção. A sua argumentação fundamenta-se em observações científicas que demonstram, no seu entender, que chimpanzés, bonobos, elefantes, papagaios, golfinhos, orangotangos e gorilas se qualificam para esse estatuto. Ele propõe uma categorização complexa para os animais, mas não entrarei em pormenores, aqui. 

Mas gostaria ainda de dar mais um exemplo interessante de uma iniciativa legal deste género. A teoria de cidadania de Kymlicka (‘Zoopolis: A Political Theory on Animal’) divide os animais em três categorias: animais domésticos, que basicamente inclui os animais de companhia e os criados na agro-pecuária; animais selvagens; e animais que estão no limiar entre os dois grupos anteriores, como os pombos, esquilos e outros adaptados a uma vida entre os humanos, ainda que não estejam sob o seu cuidado directo. Cada diferente relação humano-animal irá pressupor implicações legais distintas. Animais domésticos seriam assim cidadãos, animais selvagens teriam soberania e animais-charneira seriam tratados como cidadãos. A parte mais importante desta sugestão é que os animais domésticos teriam o direito prima facie de partilhar espaços públicos, e causar dano a um cidadão constituiria um acto criminoso. De um ponto de vista legal, esta sugestão é arriscada. Uma vez que há acordos internacionais e organizações como a ONU que requerem uma intervenção de urgência em caso de massacre em massa num dado país, poder-nos-emos interrogar sobre o que esta perspectiva implicaria relativamente ao abate de um rebanho de gado. 

AO: Os animais têm direitos legais hoje em dia? 

OV: As actuais leis relativas aos animais tomam a perspectiva do bem-estar, e regulam usos específicos de animais. Estas leis são tolerantes ao sofrimento indissociável das práticas que envolvem a criação de animais para consumo, ou em investigação biomédica. A maior parte das leis nacionais apenas reconhece personalidade jurídica aos humanos, sendo os animais propriedade. Em contraste com a abordagem do bem-estar, vários países têm adoptado leis que contêm elementos de direitos legais dos animais, como o direito à vida, ou o da liberdade de tortura. Assim, os direitos dos animais existem de facto na legislação nacional de alguns países, mas não de modo sistemático, pois não reflectem os direitos humanos. Um exemplo bem conhecido é o dos direitos conferidos aos grandes primatas em Espanha, e que incluem o direito à vida, a protecção da liberdade individual e a proibição da tortura.

Como salientei, há uma grande diferença entre estes direitos dos animais e direitos humanos básicos. Os direitos humanos estão incorporados no sistema legal, mas também diferem em ‘profundidade’. Os direitos dos animais são referentes a necessidades biológicas: direito à liberdade da tortura, direito ao acesso a recursos naturais, etc. Os direitos fundamentais dos humanos são muito mais complexos: direito à privacidade, direito a viver, existir; direito a ter família, de possuir propriedade, de livre expressão, de segurança, de ter um julgamento justo, de ser considerado inocente até prova em contrário, de ser reconhecido como uma pessoa, direito ao trabalho, etc. 

AO: Parece-me que aquilo de que falaste aqui é mais se os animais têm ou não protecção legal, mas não tanto se têm ou não direitos. Ou ambas são a mesma coisa, de um ponto de vista jurídico? 

OV: Não há consenso, a este respeito. A protecção aos animais e os direitos dos animais sobrepõem-se bastante. Muitos consideram que as leis anti-crueldade reconhecem direitos porque os animais são protegidos pelo seu valor intrínseco e não pela perda financeira que a sua perda possa significar para os seus donos, por exemplo. Os animais são protegidos nas actuais leis anti-crueldade porque são seres sencientes, sendo claramente capazes de sofrimento e felicidade. Mas, na minha opinião, estas leis não constituem reconhecimento de direitos porque não clarificam o estatuto legal dos animais. Se o reconhecimento legal dos animais fosse igual ao dos humanos, os animais deveriam ser considerados como personalidades jurídicas e os humanos não poderiam ter acções para com eles que não pudessem ter com outros humanos equiparados. Nenhuma experimentação animal, nenhum consumo de carne, nenhuma excepção. Mas os direitos são um tema controverso na lei relativa aos animais, havendo no entanto iniciativas mais moderadas para adaptar o estatuto legal dos animais às leis para os humanos.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Há raças perigosas?

No meu entender, a resposta curta à pergunta em epígrafe será SIM. Para a resposta mais comprida, sugiro ao leitor que me acompanhe nas próximas linhas.

Parece-me evidente que há, de facto, cães que são perigosos. é necessário contudo reflectir sobre quais os factores que determinam a perigosidade de cada animal, e se a raça poderá ser um deles. A legislação portuguesa é clara nesse sentido, definindo um restrito grupo de raças como merecedoras de particular atenção. Assim, para além do conceito de "cães perigosos" - isto é, aqueles indivíduos comprovadamente perigosos, por terem atacado humanos ou outros animais - temos também ao nível legal "cães potencialmente perigosos", nomeadamente aqueles que: 


Devido às características da espécie [???], ao comportamento agressivo, ao tamanho ou à potência de mandíbula,
possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, nomeadamente os cães pertencentes às raças previamente
definidas como potencialmente perigosas em portaria do membro do Governo responsável pela área da agricultura,
bem como os cruzamentos de primeira geração destas, os cruzamentos destas entre si ou cruzamentos destas
com outras raças, obtendo assim uma tipologia semelhante a algumas das raças referidas naquele diploma regulamentar"

São estas as raças: Cão de fila brasileiro, Dogue argentino, Pit bull terrier, Rottweiller, Staffordshire terrier americano, Staffordshire bull terrier, Tosa Inu. Contudo, o número limitado de raças contempladas e a dificuldade em definir  as tipologias das mesmas impõem dificuldades na aplicação da legislação. Para além disso, estas listas são sempre difíceis de justificar e interpretar. São feitas com base em que critérios (estatísticos? análise comportamental? morfologia do animal? pareceres de especialistas? de criadores?) e pode estar sujeita a grande subjectividade, pela força de factores geográficos, históricos, culturais, e até pessoais. 

Mas voltemos à questão inicial: haverá, de facto, raças potencialmente perigosas? Foi já defendido (e muito debatido)  neste blog se os factores morfológicos - como o porte e a força da dentada - não serão os principais factores determinantes para a perigosidade do animal.  Concordo em parte, pois o mais violento dos Chihuahuas não representará perigo de vida para ninguém. Contudo, e como já referi nos comentários que fiz a esse post  - escrito a propósito de um artigo de opinião de Mónica Roriz - há também factores genéticos do comportamento, muitos deles associados a algumas raças em particular, e que não podem ser ignorados. (vide Lockwood, por exemplo) 


Independentemente do seu temperamento, em nenhuma circunstância
o cão da esquerda apresentará perigo de vida para seres humanos.
Já  para o cão da direita, isso dependerá do seu temperamento. 
No clássico livro Genetics and the Social Behavior of the Dog, (1965) Scott and Fuller evidenciaram que diferentes raças tem diferentes graus - bem como tipos - de agressividade, sendo portanto a mesma resultado da selecção artificial dessa característica ao longo de séculos.

De leitura mais rápida, mas também muito útil para a compreensão do factor "raça" na agressividade é The Ethology and Epidemiology of Canine Aggression"  de  Randal Lockwood (e que disponiblizo mais abaixo neste post). 

Um exemplo que considero particularmente interessante neste artigo de Lockwood é a diferença entre o comportamento de um Staffordshire Terrier (Inglês ou Americano) cujos antecessores não tenham  sido seleccionados para combate há mais de 50 gerações, e o de um Pit Bull Terrier Americano de uma linhagem continuamente seleccionada  para combates. Ainda que fisicamente indistinguíveis, a diferença entre estes dois indivíduos ao nível da  tendência para a agressão inter-específica é grande, mostrando-nos como a genética canina pode ser manipulada por selecção artificial para a agressividade.  

 epidemiology of canine aggression randal lockwood pdf

Dito isto, podemos facilmente estabelecer uma relação linear entre raça e agressão? Como seria de esperar, tal não se afigura fácil, de todo. Primeiramente, porque a causa dos incidentes com cães é multifactorial.  Por outro lado, não há desde Scott e Fuller estudos sistemáticos significativos de avaliação do grau de perigosidade de cada raça, para os humanos (e sobretudo crianças e idosos, os mais vulneráveis, como reportado por Lockwood) ou outros animais. Para além disso,  restringir essa avaliação apenas a raças definidas irá ignorar as suas diversas variantes e crossbreeds. 

Então, o que fazer? Cada animal um caso, e é improvável que consigamos ter soluções "universais" para cada raça, ou mesmo cada indivíduo. Uma possível solução poderá passar pela contribuição dos veterinários para a caracterização do temperamento  de cada animal, do seu potencial para a agressividade (tendo em consideração factores como raça, idade, sexo, historial do animal, condições dos donos, ou outros) e das consequências de um eventual ataque, advertindo os proprietários sobre os cuidados a ter para evitar situações perigosas. Outras medidas poderão incluir o registo e acompanhamento destes animais pelas autoridades.

Independentemente de todos os cuidados que se possam ter com estes animais, tenho ao nível pessoal alguns problemas com a criação e aquisição deliberada de cães tendencialmente perigosos, principalmente por parte de quem não tem formação nem recursos para lidar com eles, não havendo grande controlo a esse nível. Para além disso, ainda que reconheça que os factores ambientais são também determinantes para a perigosidade de cada animal e no despoletar de situações de perigo, reconheço também que estes factores ambientais são muitas vezes desconhecidos, imprevisíveis e por isso difíceis de controlar.

Face a isto, e a nível pessoal, costumo recomendar a quem pretende partilhar a sua vida com um cão e possa escolher, que opte por cães de menor porte - com a vantagem de poderem ser mais longevos - e de trato tão dócil quanto for possível determinar pela raça e historial do animal, principalmente se viver com crianças ou idosos. Mas outras opiniões são bem-vindas...

O difícil conceito de direitos


Dois fenómenos relacionados, na esfera de debate publico em Portugal neste momento e que pelo tema pede comentário animalógico:   

I) A quantidade de subscritores a uma petição pública pedindo para deixar viver o cão que causou a morte de uma criança de 18 meses

Neste momento vai em mais que 65 000. É verdade que apenas é 0.5% da população portuguesa e que o acto de subscrever a uma petição on-line não exige muito esforço. Por outro lado, 4000 destes a subscrever a uma petição sobre, por exemplo, o tratamento de animais na lei portuguesa, seria suficiente para levar a uma apreciação no Plenário da Assembleia de Republica 

A petição em si é demasiado curta para permitir grandes conclusões sobre a base dos seus argumentos. De facto, parece mais baseada numa reação espontânea contra o que quem escreveu entende como injustiça no tratamento do cão do que numa coerente visão sobre o estatuto do animal na sociedade humana. Mas mostra que em Portugal em Janeiro de 2013, na plena crise económica, este assunto preocupa.   

2) O frenesim com que comentadores com espaço privilegiado respondem declarando que os animais não têm direitos.  

Isto não é um novo fenómeno. A primeira vez que o encontrei foi há tanto tempo que o formato era um recorte do jornal que já perdi. A mais recente anterior, do qual tomei nota, foi o Paulo Rangel numa entrevista no jornal Sol (ver ‘recorte digital’ aqui). A argumentação anda quase sempre a volta da consideração que os animais não podem ter direitos porque não podem ser responsabilizados pelos seus atos, ou não têm direitos porque só os seres humanos têm porque os seres humanos ocupam um lugar de excecionalidade (cuja justificação ora não é explicado, ora é baseado nesta capacidade cognitiva anteriormente referida). Tanto Rangel acima como Daniel Oliveira (no jornal Expresso, em comentário à petição) usa o segundo argumento, Henrique Monteiro (também no Expresso) tem uma explicação relacionada mas ainda mais simples: “não podem ter direitos, uma vez que o direito tem por objeto a regulação entre pessoas”. 

Bem, se fosse tão simples descartar o conceito de direitos dos animais, podíamos igualar a alquimistas os muitos académicos (filósofos e juristas) que dedicam horas de trabalho e páginas de escrita à questão. Não é, evidentemente, o caso. E por ser um assunto complexo e parcialmente fora do domínio dos animalogantes da casa, pedimos um comentário a uma especialista em direito e em ética animal, a ser publicado brevemente.  

Entretanto, aproveito para declarar que ao contrário do mito prevalecente e ao contrário do declarado na crónica do Henrique Monteiro, não existe uma Declaração de UNESCO dos direitos dos animais. A entrada lusófona da Wikipedia esclarece corretamente do que se trata: “uma proposta para diploma legal internacional, levado por ativistas da causa pela defesa dos direitos animais à UNESCO em 15 de Outubro de 1978”. Portanto, algo muito diferente do que a UNESCO a proclamar!

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Cães e crianças


Decorre nas redes sociais em Portugal uma discussão sobre o abate do cão que feriu mortalmente uma criança em Beja. Uma petição com dezenas de milhares de assinaturas pede que o cão não seja abatido, e que seja investigado o que realmente passou e porque reagiu como reagiu.

Que o caso é bicudo é indiscutível. Que nenhum os animalogantes no momento tem o tempo de se debruçar em profundidade sobre o assunto também. Então, ignora-lo ou dizer algo superficialmente?

Escolho partilhar convosco uma cena que vi recentemente e que não me tem saído da cabeça. No pleno centro do Porto, Rua da Cedofeita, um solarengo sábado de manhã. Um cão de porte médio anda a trela, junto ao dono na parte pedestre da rua, tranquilamente. Uma criança de 2 ou 3 anos caminha igualmente tranquila e bem-disposta, de mão dada com um adulto. Ao ver o cão, a criança solta a mão da pessoa que a acompanha, desata a correr, atira-se para o cão e tenta abraça-lo. Tudo acompanhado de gritos entusiastas por parte da miúda cuja experiencia prévia de cães claramente tinha sido positiva.

Felizmente, tudo que o cão (que ficou visivelmente transtornado) fez foi de recuar e tentar fugir. Mas se se tivesse tentado defender?

Oportunidades de doutoramento em cognição animal

Consequências cognitivas e emocionais de obesidade em ratos   

Universidade de Copenhaga, Dinamarca

Uma vaga para doutoramento orientado por Dr. Dorte Bratbo-Sørensen em conjunto com uma equipa interdisciplinar e no âmbito de um projeto de colaboração universidade-industria. Mais informações aqui e através de e-mail para brat@sund.ku.dk. Concurso aberto até 11 de fevereiro de 2013.

 


Cognição comparativa em canídeos
Universidade de Medicina Veterinária, Vienna, Austria


4 vagas para doutoramento no âmbito do projeto “Understanding the proximate mechanisms for canine cooperation



1. Conspecific and interspecific social tendencies in dogs
2. Prosocial attitudes in dogs and wolves
3. Inequity aversion in dogs and wolves
4. The underlying mechanisms of inequity aversion in dogs

Os trabalhos terão lugar no Clever Dog Lab e/ou www.wolfscience.at e serão orientados por Dr. Friederike Range que também é a pessoa a contactar para obter mais informações e para submeter candidaturas (friederike.range@vetmeduni.ac.at). Concurso aberto até 1 de fevereiro de 2013.